Prefiro uma nesga de rio a uma imensidão de mar

Sem computador e numa casa desfeita, sinto-me só e sofrida.

Deram-me o sol inteiro e um oceano a perder de vista. Em troca, levaram-me a minha nesga de rio e a minha cidade fetiche. O meu ancien quartier foi substituído por um bairro novo-rico e muito kitsch, de casas quadradas como paralelepípedos tombados e de elevadores que impedem as pessoas de comunicar.

Tudo o que sempre não quis veio para mim, como castigo.

Sofro, é verdade, e ninguém sabe porquê, porque gosto tanto desta cidade de sete colinas íngremes que só sabem amar a quem as ama e as respeita; porque gosto tanto do triângulo de rio que me espreita em cada manhã, e agora cada vez mais intensamente porque ele e eu sabemos que é o adeus. Um adeus aos lamentos futuros com cheiro a saudade das noites de raiva, de prazer, de nostalgia...

Ninguém sabe compreender que eu prefira uma nesga de rio a uma imensidão de mar. Mas sou assim. Gosto de águas-furtadas com cheiro a História, de escadas íngremes e protectoras de intrusos, de sítios pequenos recheados de segredos eternamente guardados.

E depois, a madeira sempre me lembra um tapete mudo que sofre em silêncio ou ri baixinho com as dores e as alegrias de quem a pisa.

Há vida em cada centímetro quadrado desta exígua casa erguida numa colina virada para o rio e para o sol. Eles e eu vivemos durante mais de um ano uma relação cúmplice e perfeita e sinto-me mulher traidora ao trocá-los por um mar imenso. Do meu rio, eu vejo-lhe a outra margem e sinto-me segura. Do mar, não sei onde acaba (ou onde começa?) e nunca será meu. Aquela imensidão indomável faz-me calafrios por não vislumbrar vida do outro lado. Na outra margem do oceano também há gente, gente que ri e gente que padece, mas não consigo nem pressentir a sua existência.

É essa solidão face ao infinito que me deixa triste. É este lamento de um rio que eu abandono, a outros que não saberão talvez amá-lo como eu, que me faz sofrer.
É esta velha urbe, todos os dias calcorreada por infiéis e que eu agora abandono como um romance a quem roubaram o fim, que me aperta o coração.
É uma imensidão de pequenas coisas maiores do que o oceano que me faz sentir vontade de chorar rios de dor que não sequem jamais.

Mas troco este amor por outro amor. Menos platónico e mais humano. É a minha vez de ceder (e como custa!) e faço-o com um doce sabor a toranjas verdes.
Talvez possa aprender a amar o mar, como uma viúva redescobre o amor noutra pessoa. Talvez possa aprender a amar o tal mar indomável como amo o meu rio manso. Talvez o mar também me inspire, e talvez o esforço poupado nas escadas não subidas se transforme em energia criadora.

Talvez seja só ciúme (do quê, nem sei) de uma amante apartada do seu amor.
Talvez seja só birra de menina a quem roubaram o brinquedo predilecto.
Talvez seja só dor.
Ou só amor. Por qual deles?

(c) Dulce Dias - 1996-03-10

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